Seymour M. Hersh
Jornais, revistas e redes de TV continuarão reduzindo a equipe e encolhendo o orçamento disponível para uma boa reportagem, especialmente para as investigativas, cujo custo é elevado.
Esta é uma parte da história do importante jornalista Seymour M. Hersh, 82 anos, repórter desde o final da década de 1950, se destacou nos anos seguintes pela investigação de questões militares e geopolíticas dos EUA.
Parte do seu livro de memórias “Repórter”, que será publicado brevemente em português, em artigo de Época, 14 de abril, com tradução de Antônio Xerxenesky.
Longo, mas deve ser lido, pois verão que não se ganha um premio Pulitzer impunemente.
O que achei mais surpreendente foi que Hersh em nenhum momento divide as coisas ideologicamente. Nestes tempos atuais, isto causa enorme surpresa…
Seymour Hersh ganhou o prêmio Pulitzer, o principal do jornalismo estadunidense ao descrever o massacre de mulheres e crianças em uma aldeia vietnamita ocorrido em março de 1968
Sou um sobrevivente da era de ouro do jornalismo, quando os repórteres dos jornais diários não tinham que competir com as notícias 24 horas da TV a cabo, quando os jornais ganhavam muito dinheiro com propaganda e classificados, e quando eu era livre para viajar para qualquer lugar, no momento que desejasse, por qualquer motivo, com o cartão de crédito da empresa. Havia tempo suficiente para cobrir notícias de última hora sem ter de ficar constantemente relatando as novidades no site do jornal.
Não havia mesas-redondas com especialistas e jornalistas na TV a cabo que começam a responder a qualquer pergunta com as duas palavras mais mortais do mundo da imprensa: “Eu acho”. Estamos saturados de notícias falsas, informações exageradas e incompletas, e asserções falsas feitas sem parar nos nossos jornais diários, nossas televisões, nossas agências de notícia on-line, nossas redes sociais, e pelo nosso presidente.
Sim, é uma bagunça. E não há nenhum passe de mágica nem um salvador à vista para a imprensa séria. Os jornais, as revistas e as redes de TV mainstream continuarão demitindo repórteres, reduzindo a equipe e encolhendo o orçamento disponível para uma boa reportagem, especialmente para reportagens investigativas, cujo custo é elevado, o resultado é imprevisível e ainda têm grande capacidade de irritar leitores e atrair processos caros. Muitas vezes os jornais de hoje correm para imprimir notícias que mal passam de indícios ou suspeitas de algo tóxico ou criminoso. Por falta de dinheiro, tempo ou de uma equipe habilidosa, estamos cercados por histórias com “ele disse, ela disse”, nas quais o repórter não passa de um papagaio. Sempre pensei que era a missão de um jornal buscar a verdade e não apenas registrar a discordância. Houve um crime de guerra? Os jornais agora dependem de um relatório negociado pelas Nações Unidas que aparece, no melhor dos casos, meses depois para nos contar a história.
E a mídia fez algum esforço significativo para explicar por que relatórios da ONU não têm sido considerados a palavra final por muitos ao redor do mundo? Há relatórios críticos sobre a ONU? Posso ousar perguntar sobre a guerra no Iêmen? Ou o motivo pelo qual Donald Trump tirou o Sudão da sua lista de países cujos cidadãos têm restrições para entrar nos Estados Unidos? (A liderança em Cartum, no Sudão, mandou tropas para lutar no Iêmen em nome da Arábia Saudita.)
Minha carreira sempre girou em torno da importância de falar verdades relevantes e que ninguém queria ouvir, e tornar os Estados Unidos um país mais instruído. Não estava sozinho nesse objetivo de fazer a diferença; penso em David Halberstam, Charles Mohr, Ward Just, Neil Sheehan, Morley Safer e dezenas de outros jornalistas do mais alto nível que fizeram tanto para nos ensinar sobre o lado sórdido da Guerra do Vietnã. Sei que não seria possível ter tanta liberdade nos jornais de hoje quanto eu tive até uma década atrás, quando começaram os cortes financeiros. Lembro vividamente do dia em que David Remnick, o editor da New Yorker , me telefonou em 2011 para perguntar se eu podia fazer uma entrevista com uma fonte importante pelo telefone em vez de voar 5 mil quilômetros para realizá-la ao vivo. David, que fez todo o possível para apoiar minha cobertura dos horrores da prisão de Abu Ghraib em 2004 — ele pagou caro para permitir que eu publicasse reportagens em três edições consecutivas —, me implorou no que julguei ser uma voz envergonhada, dolorida, quase um sussurro.
Onde estão as matérias de peso sobre as operações das Forças Especiais dos Estados Unidos que continuam sendo realizadas e a disputa política sem fim no Oriente Médio, na América Central e na África? Com certeza continuam ocorrendo abusos — a guerra é sempre um inferno —, mas os jornais de hoje e as redes de TV simplesmente não têm dinheiro para manter correspondentes lá, e quem ainda faz isso —, basicamente o New York Times , onde trabalhei alegremente por oito anos na década de 70, sempre causando encrenca — não consegue financiar as reportagens de longo prazo necessárias para mergulhar a fundo na corrupção dos militares ou dos serviços de Inteligência. Como você lerá aqui, demorei dois anos para aprender o que precisava para relatar a espionagem doméstica ilegal que a CIA realizava nas décadas de 60 e 70.
Não finjo ter a resposta para todos os problemas da imprensa nos dias de hoje. O governo federal deveria apoiar a imprensa, como a Inglaterra faz com a BBC? Pergunte a Donald Trump. Deveria haver alguns poucos jornais nacionais financiados pelo público? Em caso afirmativo, quem poderia comprar ações dessa empreitada? Este é claramente o momento de renovar o debate sobre o que fazer a seguir. Acreditei por anos que tudo se resolveria, que os jornais americanos decadentes seriam substituídos por blogs, coletivos de notícias on-line e por semanários que preencheriam as lacunas das reportagens locais, assim como das notícias nacionais e internacionais, mas, apesar de alguns poucos casos de sucesso — VICE , BuzzFeed , Politico e Truthout são os nomes que me ocorrem —, isso não está acontecendo; em consequência, a mídia, assim como a nação, está mais tendenciosa e estridente.
Escrevi meu livro de memórias. É um relato de um sujeito que veio do Meio-Oeste, começou sua carreira como contínuo para uma pequena agência que cobria crimes, incêndios e julgamentos e que, 11 anos depois, trabalhando como repórter freelancer em Washington para uma pequena agência de notícias contrária à guerra, estava metendo dois dedos nos olhos de um presidente ao contar de um horripilante massacre americano, e sendo recompensado por isso. Não é preciso me dizer sobre o fascínio, e o potencial, dos Estados Unidos. Talvez por isso seja tão doloroso pensar que eu não teria conseguido fazer o que fiz se tivesse de trabalhar com o jornalismo caótico e sem estrutura de hoje em dia.
É claro que eu continuo tentando.
Cresci na Zona Sul de Chicago sem conhecer uma só pessoa na área do jornalismo e tendo muito pouco interesse pelo mundo além do campo de futebol e do playground mais próximo. Mas eu lia as páginas de esporte e, aos domingos, os quadrinhos. Meus pais eram imigrantes judeus — meu pai, Isadore, veio da Lituânia; minha mãe, Dorothy, da Polônia. Chegaram a Ellis Island logo depois do fim da Primeira Guerra Mundial e, de alguma maneira, acabaram indo parar em Chicago, onde se conheceram e se casaram. Não penso que eles, uma vez nos Estados Unidos, tenham conseguido terminar o ensino médio — havia uma vida por ser feita e uma família por alimentar. Vieram quatro crianças, dois pares de gêmeos: minhas irmãs, Phyllis e Marcia, nasceram em 1932, cinco anos antes de mim e de meu irmão, Alan. Nenhum de nós entendia por completo o que levou nossos pais a abandonarem suas famílias e o local onde nasceram para embarcar na longa viagem de navio até os Estados Unidos. Foi uma conversa que nunca tivemos, assim como nunca falamos da falta de educação formal dos meus pais. Éramos de classe média baixa. Meu pai era dono de uma empresa de limpeza na Avenida Indiana, 4.507, no centro do que na época era, e ainda é, um gueto negro na Zona Sul de Chicago. Era um emprego das 7 da manhã às 7 da noite, e as entregas muitas vezes o mantinham lá por mais uma hora. Quando Al e eu mal tínhamos entrado na adolescência, esperava-se que trabalhássemos na lavanderia quando ele nos pedia, nos fins de semana e nas tardes mais ocupadas durante a semana. Meu irmão e eu morríamos de medo de nosso pai, que tinha um temperamento explosivo e cuja ideia de um domingo divertido era acordar cedo, pegar nós dois, dirigir até a lavanderia, lavar o chão, e então nos levar para uma sauna russa, que não existe mais faz tempo, na Zona Oeste de Chicago, onde ficávamos suando e depois éramos esfregados com galhos duros de bétula. Nosso prazer vinha depois; havia uma pequena piscina onde podíamos pular, e arenque fresco com refrigerante para o almoço. Papai era um homem misterioso. Aprendi só seis décadas depois de sua morte que a sua cidade natal era Seduva, um vilarejo de fazendeiros com uma grande comunidade judaica, a cerca de 160 quilômetros a noroeste da capital, Vilnius. Em agosto de 1941, a população judaica de Seduva, de 664 pessoas, incluindo 159 crianças, teve de marchar para fora do vilarejo e lá foram executados, um a um, por uma unidade alemã auxiliada por colaboracionistas lituanos. Meu pai nunca falou da Alemanha nazista ou da Segunda Guerra Mundial. À sua própria maneira, Isadore Hersh era tanto um sobrevivente do Holocausto como um negacionista do Holocausto. Meu pai me contou, no entanto, que ganhou uns preciosos dólares tocando o cantar dos pássaros no violino quando chegou aos Estados Unidos, no início da década de 20. Era só uma história que eu tinha ouvido até que, depois de muita pressão, meu irmão e eu começamos a fazer aulas de violino nas tardes de domingo com David Moll, que era na época, ao final da guerra, um violinista da Sinfônica de Chicago. Al e eu ficávamos pateticamente arranhando o instrumento por uma hora e pouco, e daí Moll e nosso pai tocavam duetos sem parar. Nosso pai realmente sabia tocar, mas nunca o fazia fora dessa hora com Moll. Lembro-me de que um dos seus outros prazeres era o carteado mensal de sábado à noite com seus conterrâneos, refugiados de Seduva que, como ele, eram pequenos comerciantes que acabaram indo parar em Chicago.
Meu pai nunca entendeu os Estados Unidos. Quando Al e eu estávamos no segundo ano do ensino médio, nos mudamos do nosso modesto apartamento situado no que pensávamos ser uma comunidade predominantemente judaica na Rua 47 Leste para um novo conjunto habitacional, a muitos quilômetros de distância, no extremo sul da cidade. Foi ideia da nossa mãe. A nossa nova moradia era uma unidade de esquina em um complexo de casas, estava cheia de novos móveis cobertos de plástico, e havia uma pequena faixa de grama do lado de fora. Nós detestamos, mesmo tendo dois banheiros, porque ficamos muito longe de nossos amigos e dos campos de esportes que conhecíamos tão bem. Alguns dias depois da mudança, eu estava ao lado do meu pai enquanto ele, obedientemente, e bem quieto — ele sempre foi quieto, até o seu temperamento explodir —, regava o gramado. Em algum momento, um de nossos novos vizinhos apareceu com um sorrisão. Era a pessoa mais irlandesa possível, com um sotaque fortíssimo. Disse que seu nome era McCarthy e nos deu as boas-vindas ao bairro. Meu pai apertou a mão dele e perguntou, de forma queixosa: “Por acaso você é um praticante da fé judaica, sr. McCarthy?”. Ainda consigo sentir a mortificação de quando saí correndo para dentro de casa coberto de vergonha. Minha mãe deve ter se esforçado para se adaptar aos Estados Unidos também, mas ela encontrou um refúgio, por sorte, acredito, na sua obsessão por cozinha e confeitaria. A comida se tornou o seu principal meio de comunicação. Mamãe, para ser justo, era incrível com biscoitos e tortas; ainda consigo sentir o gosto do strudel de maçã que fazia, mesmo sem conseguir me lembrar de ter tido qualquer conversa íntima com ela.
Meu pai fumava três maços de Lucky Strike por dia — eu tinha ojeriza da sua tosse constante à noite — e foi diagnosticado com câncer de pulmão agudo quando eu tinha apenas 16 anos. Isso me impediu de fumar algo além de um baseado ocasional ao longo de minha vida. Ele passou por uma cirurgia que não deu certo e a doença continuou avançando por mais um ano, até chegar à metástase e atingir o cérebro. Fui designado para cuidar dele porque tinha menos medo de desagradar-lhe e de apanhar, como às vezes acontecia, quando ele me batia com o couro que ele usava para afiar a lâmina de barbear. Uma das minhas primeiras lembranças é observar impressionado o meu pai afiá-la e depois fazer a barba cuidadosamente com aquela lâmina assustadora. Meu pai permaneceu pouco comunicativo, mas muitas vezes, por dentro, estava furioso com o seu destino. E com o nosso. Dava para sentir. Ele morreria aos 49 anos, no fim de julho de 1954, um mês depois de meu irmão e eu terminarmos o colégio.
Eu mal consegui concluir o colégio, pois entrei, junto com o meu pai, numa grande tristeza. Sempre fui um aprendiz agressivo, um autodidata que por volta dos 13 anos entrou no clube de leitura e mensal e diligentemente enviava um dólar por mês para receber a seleção de não ficção — em geral era uma diatribe anticomunista escrita por J. Edgar Hoover ou por pessoas que compartilhavam de sua visão. Mas também havia obras prazerosas — longas histórias da monarquia Habsburgo e estudos sobre a Igreja Católica Romana e as Cruzadas Cristãs da Idade Média. O colégio, porém, tornou-se cada vez mais irrelevante para mim ao passo que meu pai pouco a pouco definhava. Eu matava aula, ignorava as tarefas de casa, era arrogante com os professores e demonstrava, de todas as formas antissociais, o quanto ficava perturbado porque ninguém vinha me buscar no colégio ou me esperava em casa.
Fiz um acordo com Alan, que passou anos fascinado com a nova ciência da cibernética, cujo pioneiro era Norbert Wiener, do MIT, seu guru. Ele poderia sair de Chicago e se mudar para o campus da Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign, ao sul do estado, a duas horas de carro. Ficou subentendido que, em troca disso, ele cuidaria da nossa mãe depois da graduação. Al estudou engenharia elétrica e deixou a família orgulhosa, e acabou fazendo doutorado em dinâmica de fluidos na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Eu não fiquei deprimido porque, o tempo inteiro, estive muito mais envolvido do que Al com a lavanderia do meu pai, com o constante cheiro de fábrica de trabalho escravo por causa do vapor gerado pela máquina de passar roupa que esmagava ternos e casacos. Eu queria ter certeza de que esse negócio sobreviveria e que manteria a minha mãe dedicada às suas panelas, assadeiras e farinha. Isso sim é estar deslocado. Não importava que eu e outros dois da minha classe tivéssemos atingido a nota mais alta no teste-padrão de QI no nosso último ano; os outros dois foram para Harvard, e eu não tinha ideia do que faria, além de dar continuidade ao negócio da família. Minhas irmãs tinham saído de casa bem antes, então só sobraram minha mãe e eu, uma casa nova que eu detestava, e a lavanderia. Ser inteligente, naquele momento, era irrelevante. Mas eu era dono do meu próprio destino e fiz as escolhas que achava que deveriam ser feitas, mesmo que elas me mantivessem na Avenida Indiana.
Tive cedo uma aula sobre ética de negócios, poucas semanas depois do falecimento do meu pai, com Benny Rubenstein, o patriarca de uma sinagoga local no nosso antigo bairro — ninguém de nossa família agnóstica chegava perto dela, embora Al e eu tivéssemos feito hebraico lá, basicamente porque ficava perto de um grande campo de softbol. Benny, um sobrevivente do Holocausto, era um sujeito franzino na faixa dos 80 com um nariz grande e tufos imensos de cabelo branco saindo das orelhas. Fazia muito calor, um calor do meio do verão, e o apartamento dele, assim como todos os outros da antiga vizinhança, não tinha ar-condicionado. Fiquei nervoso quando Benny me chamou, e ao entrar lá, o velho, com um golpe rápido, agarrou uma mosca com a mão, esmagou-a e deixou-a cair. Tente fazer isso alguma vez. Nunca vou esquecer as palavras dele, ditas com o sotaque mais iídiche dos iídiches: “Seymour. Você agora é o homem da casa, e precisa cuidar da sua mãe. Então vou lhe dar um conselho como homem de negócios. Foda com eles antes que eles fodam com você!”. Fiquei pasmo. Ele realmente disse “foder” duas vezes? Estava falando dos nazistas ou de um possível parceiro de negócios? Saí daquele apartamento o mais rápido possível.
Um mês depois, segui o único caminho possível: eu, uma pessoa de conhecimentos gerais que detestava ciências mas adorava romances e história, faria uma faculdade de dois anos no centro de Chicago, que para entrar não exigia nada além da capacidade de pagar US$ 45 por semestre para ter um armário. A instituição, conhecida como Navy Pier ( Píer da Marinha ), foi aberta pela Universidade de Illinois imediatamente depois da Segunda Guerra em uma antiga base de treinamento da Marinha que se projetava quase 1 quilômetro para dentro do lago Michigan. Fora criada para acomodar veteranos que retornaram da guerra com pouco dinheiro e desesperados para ter alguma educação. Depois de dois anos, os alunos tinham de ser transferidos para o campus principal em Urbana-Champaign para obter seu diploma.
Minha agenda semanal envolvia abrir a lavanderia às 7 da manhã e aí, quando chegasse um funcionário, dirigir alguns quilômetros até a faculdade para frequentar as aulas. Lembro-me de caminhar por um corredor central mal iluminado que levava às salas de aula de madeira úmida, antes usadas para ensinar navegação e outras habilidades para os homens que iam para a guerra. Eu odiava, em especial, a educação física obrigatória, que exigia que todos os estudantes do sexo masculino corressem, ou tentassem correr, 400 metros em menos de um minuto. Não conheci ninguém na faculdade e não fiz amigos lá. Dirigia até o local, frequentava as aulas, corria na pista de corrida e dirigia de volta até a lavanderia.
E, no entanto, a minha vida mudou lá — ou talvez tenha sido salva — graças a uma intervenção que fui capaz de reprimir por três décadas. Corta para 1983, meses depois de eu ter publicado The price of power ( O preço do poder ), uma visão muito crítica acerca da carreira de Henry Kissinger na Casa Branca. Eu trabalhava em Washington, D.C. e estava num casamento feliz com três filhos, e meus dias na Navy Pier tinham evaporado da memória. O livro causou uma grande tempestade, pró e contra, e provocou uma enxurrada de cartas. Uma delas, cuidadosamente digitada, vinha de um professor da Universidade de Illinois chamado Bernard Kogan, que se apresentou dizendo que tinha obtido recentemente o título de doutor em literatura na Universidade de Chicago quando, na primavera de 1954, passou a ministrar um curso de literatura moderna na Navy Pier. “Prezado sr. Hersh”, assim começava a sua carta. “Tenho certeza de que você não se lembra de mim.” Eu não lembrava, mesmo depois de ele explicar o motivo pelo qual estava entrando em contato. “Eu intervim na sua vida de maneira como só viria a fazer duas vezes ao longo de minha carreira. Em um caso foi em defesa de um jovem que se tornou um cirurgião e salvou muitas vidas. A outra foi com você. Tenho orgulho dos dois.” Não fazia ideia do que o cara estava falando. E então, ao reler a carta, a memória brotou tão de repente quanto lágrimas nos meus olhos. Aconteceu três décadas atrás, e a aula tinha acabado de terminar. Eu tentava me esconder no fundão, como sempre, e estava indo em direção à porta quando Kogan me chamou pelo nome e me pediu que fosse falar com ele. Ansiedade total. Teria feito algo de errado? Caminhei até ele e a primeira coisa que me disse foi: “O que você está fazendo aqui?”.
“O que você está fazendo aqui?” Lembro-me de entender exatamente o que ele queria dizer. Era algo que eu andava me questionando fazia semanas. Como resposta, murmurei algo sobre a morte do meu pai e ter sido deixado sem escolha além de manter o negócio da família. Não me lembrava de mais nada até começar a editar este livro de memórias: agora recordo que, uma semana antes, tinha entregado um ensaio comparando um romance do escritor britânico Somerset Maugham com uma obra americana contemporânea, talvez um romance de F. Scott Fitzgerald, e Kogan me devolveu o trabalho com uma nota A e muitos comentários elogiosos. Kogan, então, me surpreendeu ao pedir que o encontrasse no Departamento de Inscrições da Universidade de Chicago assim que possível. Fiz isso, realizei o teste de admissão dado a todos os candidatos naquele mesmo dia, ou logo depois, fui aceito, e imediatamente transferido, pois o semestre tinha acabado de começar.
Sentia-me em casa lá, com a ênfase dada em pensamento crítico e um currículo que não dependia de livros didáticos, mas de obras originais de pesquisadores e teóricos. O mais importante disso é que a nota final de muitas das disciplinas era baseada apenas numa prova escrita de quatro ou seis horas. Sempre consegui escrever — dizer exatamente o que eu queria dizer de uma só vez — e essa habilidade me fez passar pela faculdade com notas melhores do que eu de fato merecia.
Quanto ao maravilhoso dr. Kogan, poucas semanas depois de receber sua carta eu viajei a Chicago para encontrá-lo e dar uma palestra, a pedido dele, diante da filial de Chicago da sociedade acadêmica Phi Beta Kappa, que ele havia fundado no fim da década de 70. Também fiz questão de, a partir de então, estar sempre disponível, na medida do possível, para palestras ou discussões em sala de aula para aqueles professores da região de Washington que tinham perguntas sobre a política externa dos Estados Unidos, seja na faculdade ou no colégio. Bernard Kogan e eu trocamos nossas últimas cartas em 1998, quando ele me disse que estava doente. No fim de 1997, ele escreveu, com uma satisfação óbvia: “Uma coisa está muito clara para mim, Seymour: você não é mais o rapaz quietinho que eu puxei para um canto e aconselhei fora da sala de aula numa tarde dos anos 50”. Obrigado, dr. Kogan.
Meus dias na Universidade de Chicago eram empolgantes e divertidos. A faculdade tinha uma boa parcela de malucos, muitos deles brilhantes e iconoclastas, com certeza. Eu não era maoista, platônico ou socrático, mas com certeza era um maluco também, porque me dividia entre a vida universitária e o cuidado com a lavanderia da família, e ainda continuava morando com a minha mãe. Apesar de tudo, arranjava tempo para estudar, jogar um ano ou dois no time de beisebol, entrar numa fraternidade, tentar entender as garotas e amadurecer. Minha mãe, em defesa dela, envolveu-se cada vez mais com o dia a dia da lavanderia, cujos rendimentos minguavam de forma constante, mas ainda gerava lucro suficiente para nos manter. Eu não tinha nenhuma relação com o jornalismo, além de ter pegado o hábito de resolver as palavras cruzadas diárias do New York Times , olhar as manchetes e me preocupar com Ike, Nikita e a bomba. Por volta de 1958, quando Alan e eu estávamos quase nos formando, a liberdade surgiu. Al, cumprindo fielmente o seu compromisso, assumiu um trabalho de engenharia em San Diego, mudou-se para lá com sua esposa e encontrou um apartamento próximo para a nossa mãe. A lavanderia foi vendida por um preço baixo a um funcionário. Eu me mudei para um porão em Hyde Park, na Zona Sul do bairro da universidade; custava US$ 12 por semana e tinha um banheiro no final do corredor. Era incrível.
Com o meu diploma em letras, mas sem ter sido laureado, passei os meses seguintes sem conseguir encontrar um emprego decente. Eu tinha bastante interesse na empresa Xerox, que à época estava a um ano de vender a primeira máquina copiadora comercial. Não lembro quem foi que me avisou da empresa, mas, no fim do verão, ficou claro que a Xerox não tinha interesse em me contratar. Um dos meus bons amigos da faculdade era o David Currie, que também jogava beisebol e cujo pai, Brainerd, era um especialista de primeira em Direito e lecionava na Faculdade de Direito da Universidade de Chicago. Ele também amava beisebol e passava horas rebatendo com bolas altas para o filho dele e para mim. David tinha ido estudar Direito em Harvard no ano anterior; ele era funcionário do juiz da Suprema Corte Felix Frankfurter e acabou lecionando por mais de quatro décadas na Faculdade de Direito de Chicago. Quando encontrei seu pai, expliquei a ele que, estando quase no fim do verão, queria entrar na Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, e o professor Currie arranjou isso em poucos dias. Ele, assim como Bernard Kogan, viu mais coisas em mim do que eu mesmo via naquela época.
Passei por alguns trimestres com notas razoáveis, mas achava o estudo das leis entediante, e a faculdade de Direito monótona, com sua ênfase em leitura e memorização de casos. Perto do fim do ano, eu tinha praticamente desaparecido e fui expulso da faculdade pelo reitor Edward Levi (que reapareceria na minha vida uma década depois). Isso não me deixou incomodado, pois sabia que tinha feito a coisa certa. Meu único arrependimento foi que Brainerd morreu em 1965 e não pôde ver eu deixar a minha marca em outra área.
Os meses seguintes permanecem pouco nítidos para mim. Pensei em entrar na faculdade de administração e frequentei algumas aulas. De jeito nenhum. Enquanto cursava Direito, trabalhei meio período vendendo cerveja e uísque numa loja de conveniências no suburbano Evergreen Park, no extremo sudeste de Chicago, e comecei a fazer o mesmo em tempo integral numa loja Walgreens em Hyde Park. Certa noite, dois escritores de Chicago que eu admirava muito, Saul Bellow e Richard Stern, entraram para comprar bebida. Stern, cujo seminário sobre escrita de ficção eu havia frequentado na faculdade — ele escolhia pessoalmente os alunos —, me constrangeu ao perguntar, basicamente, como Kogan fizera antes, o que você está fazendo aqui?
Estava naquele humor de “o-que-eu-faço-agora?” quando, bebendo uma cerveja num bar da vizinhança, deparei com um sujeito que já encontrara antes, mas não recordava a ocasião. Seu nome era Peter Lacey, e ele me lembrou de quando tentou roubar a garota que estava comigo um ano antes numa festa. (Tal sacanagem era conhecida em Hyde Park como “caçar pássaro com cachorro”.) Rimos juntos e começamos a conversar enquanto bebíamos umas cervejas. O que eu estava fazendo? Vendendo uísque. Peter, por sua vez, me falou que estava trabalhando na revista Time, mas que começara sua carreira como foca no City News Bureau (CNB) de Chicago. O City News, como aprendi na sequência, tinha sido montado na virada do século pelos jornais de Chicago para encontrar repórteres dispostos a cobrir os julgamentos na cidade e as ocorrências policias, guardando dinheiro para os peixes grandes. Os crimes de rua eram o foco do CNB — e havia muitos em Chicago — e as reportagens serviam de auxílio para os grandes jornais diários; o local também era uma fonte de repórteres jovens e ambiciosos. O City News se tornou famoso, por um curto período, graças a The front page , a peça de sucesso perene — que depois virou filme — escrita por Ben Hecht e Charles MacArthur.
Parecia divertido, especialmente porque Lacey também me disse que o City News tinha duas formas de recrutar sua equipe, que mudava o tempo inteiro: metade vinha da famosa Faculdade de Jornalismo Medill da Universidade Northwestern e a outra metade vinha de pessoas com diploma universitário que se inscreviam. Hoje já não faço ideia se era mesmo assim, mas eu acreditava nisso na época. Então fui até o escritório do City News Bureau no centro e preenchi uma ficha. Não pediram referências e eu não dei nenhuma. Um contínuo me disse que eu seria chamado quando chegasse a minha vez. Alguns meses depois, me mudei, sem pensar no fato de que o City News agora ficaria com meu telefone desatualizado. Mais alguns meses se passaram, e eu continuei vendendo uísque, vergonhosamente, e, sem vergonha alguma, a aproveitar minha liberdade — uma liberdade que eu não tinha vivido desde que meu pai adoecera. Passava meus dias lendo autores modernos e nem tão modernos — William Styron, Norman Mailer, Philip Roth, Nelson Algren, James Farrell — e mantendo um diário com todas as palavras que eu desconhecia, como “amanuense” e “alcunha”. Meu romance favorito por um bom tempo foi o famoso As aventuras de Augie March , de Saul Bellow, sobre um rapaz de Chicago que, como eu, não conseguia se dar bem na vida.
Numa sexta à noite, depois do trabalho, fui convidado para jogar pôquer no meu apartamento anterior, que agora era ocupado por um grupo de estudantes que sabiam, ao contrário de mim, jogar pôquer muito bem. Pelas 2 ou 3 da manhã eu já estava zerado e decidi dormir no sofá daquela sala de estar suja que eu conhecia tão bem. Na manhã seguinte, logo depois de o relógio marcar 9 da manhã — eu ainda dormia pesado —, o telefone tocou. Atendi. Era um editor chamado Ryberg, do City News. Estava procurando o Hersh. Confessei que era eu. Ele perguntou se eu ainda queria um emprego como foca, pagava US$ 35 por semana, e se poderia começar imediatamente. Eu podia. Semanas depois, à medida que me tornava mais e mais interessado por jornalismo, vi Walter Ryberg, o editor de Cidades que passou cinco décadas no City News, procurar um novo repórter. Ele pegou a pilha de fichas de inscrição e começou a discar. Se ninguém atendia, ou se a pessoa não morasse mais lá, a ficha era botada no fim da pilha. Minha carreira no jornalismo começou num jogo de pôquer em que perdi todo o meu dinheiro.
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