LACROECONOMIA ???

Não costumo usar repetição de sinais de pontuação. Acho uma ofensa ao vernáculo. Mas neste caso não resisti. Afinal, que porra é essa? Eu nunca ouvi falar disso. Apenas presumo que seja quando um economista é ‘lacrador’. Tem toda a aparência de um neologismo, ao concluir pelo último parágrafo dos autores do texto, onde “Na linguagem das polarizadas redes sociais, alguém “lacra” quando faz afirmações de efeito, que geram as curtidas fáceis de sua bolha, mas sem profundidade. A escolha por lacrar implica a renúncia à discussão séria. Piketty lacrou.”

 


A LACROECONOMIA DE PIKETTY

É conhecido o fato de que a pobreza no Brasil se concentra em crianças com pais desempregados

Por Pedro Fernando Nery, Paulo Tafner e Arminio Fraga*, em O Estado de S.Paulo, 13 de julho de 2019

 

Pedro Fernando Nery

 

Paulo Tafner

armínio fraga

É sempre bem-vinda em nosso debate público a participação de alguém do peso do economista francês Thomas Piketty. No entanto, o artigo “A quem interessa aumentar a desigualdade?”, recém-publicado no Valor Econômico, é uma decepção para os que admiram o influente trabalho do autor de O Capital no Século XXI, no qual há precioso zelo por análises de séries históricas, muita contabilidade e pouca economia. Nesse best-seller, ele pautou o tema da desigualdade em diversos países ao longo de anos, exibindo incomum zelo na análise de séries históricas de dados. Mas isso não impediu o célebre pesquisador e seus coautores de publicar artigo contra a reforma da Previdência repleto de erros. Não se trata de questão ideológica, mas de equívocos factuais que beiram o constrangedor.

Publicado no dia seguinte à aprovação do relatório da reforma no Plenário da Câmara, o texto erra na partida: para criticar a reforma, começa descrevendo equivocadamente as regras atuais de aposentadoria. Para os autores, existe um critério de idade para a aposentadoria por tempo de contribuição no Brasil. Como sabemos, não há, e boa parte do esforço da reforma reside nesse ponto.
A confusão é com a chamada fórmula 85/95, aprovada em 2015 no meio das iniciativas de pauta-bomba contra o governo Dilma Rousseff. Esses valores se referem à soma de idade e tempo de contribuição (85 para a mulher e 95 para o homem).

Mas a soma não é requisito de acesso à aposentadoria, e sim regra para determinação do valor do benefício. Em vez de controlar o gasto, postergando aposentadoria, o aumenta, permitindo aposentadorias precoces sem o fator previdenciário. É inclusive regressiva do ponto de vista da distribuição de renda, pois aumenta transferências de renda para grupos mais bem inseridos no mercado de trabalho – como observa ótimo estudo de Marcelo Caetano, Luis Paiva e coautores do Ipea. Os autores, desinformados, entendem que a regra é um requisito para aposentadoria. Se fosse, a reforma estaria endurecendo uma regra razoável – mas infelizmente uma regra que não existe.

Essa confusão é há muito difundida por economistas da Unicamp, inclusive na campanha presidencial – um deles, Pedro Zahluth, é coautor do texto (junto com Marc Morgan e Amory Gethin). Para eles e Piketty, a regra que não existe é a primeira alternativa para aposentadoria no Brasil, um erro crasso.

A principal modalidade de aposentadoria é na verdade a por idade: brasileiros mais pobres que não têm muito tempo de emprego formal, oscilando ao longo da vida entre o desemprego e a informalidade, já se aposentam com idade mínima. Piketty e colegas descrevem essa regra como uma regra residual, e erram feio quando dizem que sobre ela incide o fator previdenciário – reduzindo as aposentadorias. O fator previdenciário só se aplica à aposentadoria por tempo de contribuição, exatamente pelas idades precoces, não à aposentadoria por idade. Novamente, se descreve uma regra fictícia muito mais dura do que a existente, caso de desconto no valor de quem já se aposenta mais tarde.

Sobre essas regras já duras de aposentadoria, mas inexistentes, incidiria uma reforma da Previdência ainda mais draconiana. Mas a triste realidade ignorada por Piketty e coautores é que são os brasileiros mais instruídos, das ocupações mais produtivas e das regiões mais industrializadas que se aposentam muito mais cedo do que os demais. A empregada doméstica, o pedreiro ou o gari se aposentam 10 anos depois do patrão: possuem idade mínima de 65 anos, enquanto a média da aposentadoria por tempo de contribuição é de 55.

Não apenas o caráter progressivo da reforma – provocando convergência de regras entre rico e pobre – é ignorado, como a descrição das medidas novamente é repleta de erros grosseiros. Piketty e colegas relatam o fim das contribuições sociais recolhidas sobre o faturamento (Cofins) e lucro (CSLL), que deixariam de bancar o déficit da Previdência. É disparate tão alienígena em nosso debate que beira o delírio.

Nessa linha, vale notar também que o quintil mais pobre de brasileiros recebe apenas 11% do montante transferido pela União para cobertura do déficit da Previdência urbana e do funcionalismo federal.

É conhecido o fato de que a pobreza no Brasil se concentra em crianças com pais desempregados, enquanto a Previdência se concentra em pessoas mais velhas com emprego formal. Ela já consome 60% de nosso orçamento, apesar da demografia favorável, e praticamente 14% do PIB. O mesmo que países velhos como Alemanha ou Japão.

Há ainda um alarmismo descabido com a perda de cobertura entre idosos pobres, que perderiam o direito aos benefícios com a reforma. Ele é centrado na elevação de 15 para 20 anos do tempo mínimo de contribuição. Mas, desde o relatório da Comissão Especial, semanas atrás, a elevação não valeria para mulheres, grupo que representa a maioria das pessoas que se aposentam por idade. Continuou valendo para a minoria, os homens, mas a eles continuou permitido receber o BPC na mesma idade (65 anos) e no mesmo valor (1 salário mínimo). Saiba o leitor que na mesma quinta-feira da publicação do texto de Piketty e coautores, o tempo de contribuição exigido para homens também foi mantido.

O que sobra de pertinente no texto? Nada em relação à Previdência. A preocupação com a reforma tributária e tributação sobre os mais ricos é legítima e meritória – aliás, há muito defendida por nós –, mas ficou sem sentido em um texto terrivelmente desinformado.

Pesquisadores que seguem a metodologia de pesquisa de Piketty detectam de fato uma abissal desigualdade de renda no País, e reconhecem como antídoto tanto uma boa reforma da Previdência quanto uma tributária. Não falamos por eles, mas recomendamos ao leitor os importantes trabalhos de Marcelo Medeiros e Pedro Souza.

Na linguagem das polarizadas redes sociais, alguém “lacra” quando faz afirmações de efeito, que geram as curtidas fáceis de sua bolha, mas sem profundidade. A escolha por lacrar implica a renúncia à discussão séria. Piketty lacrou.

* PEDRO FERNANDO NERY é economista e consultor legislativo
PAULO TAFNER é economista e pesquisador da Fipe/Usp
ARMÍNIO FRAGA é economista e ex-presidente do Banco Central

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